sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Enquanto se aguarda pelo fim da amnésia seletiva do único sobrevivente da tragédia do Meco, parece claro, pelos indícios que vão surgindo, que esta tragédia surgiu na consequência de praxes. Neste caso, praxes de universitários para poderem integrar a comissão de praxes. Ou seja, deixou de haver apenas praxes para integrar caloiros na faculdade, é praxes para tudo.

A teoria é toda muito bonita. As praxes são momentos de convívio entre os estudantes universitários e os caloiros que visam facilitar a sua integração no mundo académico, facilitando as amizades e forjando novos laços que vão ser muito úteis durante o tempo de faculdade. Quando eu entrei na faculdade, houve dois dias de praxes. Ao primeiro não fui, porque era composto de atividades que denegriam mais as pessoas que propriamente as integravam, mas fui ao segundo, ao engano. Estava marcada uma aula de apresentação para todos os caloiros e a Sala Magna encheu-se. Entrou um "professor" muito sério, que nos deu as boas-vindas e deu início à primeira aula do ano, que servia para apresentar os cursos e indicar bibliografia a adquirir. Depois de cerca de 30 mins a escrever que nem um louco nomes de livros, horários e professores, percebemos que era tudo uma grande peta. O professor era um dos alunos mais velhos da universidade e enganou-nos bem enganados, e demos todos uma grande risada. Depois disso, fomos todos com orelhas de burro e atados uns aos outros em passeio até Belém, onde foi eleito o Mr e a Miss Caloiro. Brincadeiras inofensivas que, sim, serviram para olharmos a universidade com outros olhos.

Isto foi há 16 anos. No entanto, a verdade das praxes hoje em dia é bem diferente. Não nego que haja exceções, comissões de praxe que queiram verdadeiramente integrar os seus caloiros e fazer amizade com eles, e isso é positivo, mas na generalidade dos casos, as praxes são momentos humilhantes, nos quais alguns frustrados da vida sentem necessidade de impor um poder, que nunca tiveram nem terão de outra forma, sobre pessoas que estão numa situação fragilizada, por estarem num mundo novo e estarem sujeitos à pressão dos pares de se terem de integrar num ambiente que começa logo por humilhá-los como cartão de entrada.

Estas questões são conhecidas há anos, e têm resultado em casos bem graves, alguns deles noticiados pelos meios de comunicação social, a maior parte provavelmente não. No entanto, todos defendem que se tratam de brincadeiras inofensivas, e até surgiu um "pacto de silêncio" em relação a estas práticas, supostamente para impedir que os futuros caloiros saibam o que lhes espera (se a malta soubesse que ia ter uma aula falsa, ninguém lá aparecia, é verdade), mas que na verdade serve para libertar os responsáveis pelas praxes para fazerem as atrocidades que pretenderem e depois exigirem o silêncio dos pobres caloiros que as sofreram.

As universidades e as associações de estudantes todos os anos têm lavado as mãos sobre este assunto, referindo que são coisas da Comissão de Praxes, que não está sob a sua alçada. E agora, que morreram pessoas? Alguém vai acordar para esta realidade, pôr a mão na ferida e ter a humildade de reconhecer os erros? Ou vamos continuar a assobiar para o lado, fazer grandes homenagens aos "herois caídos", e depois continuar no regime de libertinagem, irresponsabilidade e impunidade que hoje grassa no meio académico em Portugal?

Alguém sugeria, num blogue que me passou pelos olhos, que este ano não houvesse vida académica. Acabavam-se os trajes, as festas, as queimas, as bençãos, todas as fantochadas (sim, as bençãos, na maior parte dos casos, também são fantochadas. Em Lisboa vêem-se mais pessoas a fumar, beber ou jogar às cartas do que com atenção ao que o Patriarca está a dizer na missa), e tudo isto era repensado, o que para mim faz todo o sentido. Era sinal de luto, lucidez, e permitiria a todos repensarem as coisas para que se retomassem com outros moldes, mais saudáveis.

Haverá coragem de fazer isto, ou a solução é "epá, esta bebedeira hoje é em nome dos que morreram", "sim, tu, esfrega a cara na lama e finge que és um porco para homenagear os que morreram!", ou coisas parecidas, e pronto, faz-se uma homenagem e não se pensa mais nisso, porque é "doloroso"?

É altura das universidades assumirem que o que se passa dentro das suas portas tem de ser fiscalizado e vigiado, e das pessoas responsáveis pelas praxes deixarem de querer fazer sempre pior que o que lhes fizeram a eles. Há gente com tomates para dizer "Chega"? Ou vamos continuar a assobiar para o lado sem responsabilizar ninguém, porque essa história de chamar à responsabilidade dá muito trabalho, um dia vai-me bater à porta também, e afinal, os putos secalhar até saltaram para dentro de água porque quiseram, ninguém lhes apontou uma arma à cabeça...

PS - Porque gostei, fica a partilha de uma carta aberta a esse que chamam de Dux: http://pesnosofa.blogspot.se/2014/01/carta-aberta-dux.html

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