terça-feira, 9 de outubro de 2007

Todas as terras têm as suas personagens caricatas. Gente que, sem querer ou fazer por isso, se torna lembrança de todos que se cruzam com ela. Nem sempre pelos bons motivos, claro. Na Charneca havia uma dessas personagens: um senhor que, bêbado, vinha todos os dias de Almada para a Charneca e passava à porta de minha casa. Todos os dias de manhã lá estava ele na paragem do autocarro, de olhar inexpressivo, fixado num ponto que nunca percebi qual era, entregue ao seu mundo.
À noite regressava, umas vezes de autocarro, muitas vezes a pé (de Almada à Charneca são ainda pelo menos uns 12kms, se não estou em erro), orientado pela linha branca da berma do alcatrão. Vinha na sua vida e falava sozinho. Não se metia com ninguém nem causava distúrbios, pelo menos que eu saiba. Só reclamava quando algum condutor, com receio que ele não o visse, lhe fazia sinais de luzes. Aí reclamava uma série de imprecações sem sentido que mais ninguém, além dele próprio, compreendia.
Vivia no seu mundo, fechado em sim e na bebida. Não me perguntem como é que tinha dinheiro para beber, pois não lhe conhecia ocupação.
Ontem recebi, sem grande surpresa, a notícia de que tinha morrido, atropelado por uma senhora que não o viu na estrada, na zona das Casas Velhas. Digo sem surpresa porque quem o via sabia que era uma questão de tempo até que algum condutor mais distraído o apanhasse. Admiro-me até de ter durado tanto tempo…
Fica aqui a minha homenagem a essa personagem caricata que muitos ignoravam, mas da qual todos se vão lembrar. Pois é o que acontece com quem marca, pela diferença boa ou má, o mundo por onde passa. Goste-se ou deteste-se, não se esquecem, porque não nos deixam indiferentes quando passamos por elas.

2 comentários:

Rita disse...

Aquele senhor escanzelado, de barbas e eternamente alcoolizado?

Realmente era uma figura da terra:)

Catarina disse...

Pareçe-me que era esse, porqe realmente era o mais evidente "cá da terra"...

Cheguei a vê-lo no Hospital, a dormir, simplesmente para passar a ressaca, enquanto no meio de muitos palavrões lá ia ofendendo os médicos que "mais uma vez" o deixavam por ali ficar.
Depois acordou, bebeu um copo de vinho e foi-se embora, a pé, a meio da noite até à Charneca... Apenas mais uma das muitas histórias do "Bêbado da Charneca"