sexta-feira, 30 de abril de 2010

De manhã, o Pedro Ribeiro na Comercial afirmava-se espantado com a notícia do relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) que afirmava que, nos países desenvolvidos, 15 milhões de pessoas passam fome. Para já, diga-se que o relatório da FAO diz que, em todo o mundo, são mil milhões de pessoas que passam fome, pelo que a percentagem dos países desenvolvidos é pequeníssima. No entanto, e era isso que gostava de explicar e reflectir (duvido que ele chegue a ler isto, mas paciência, lêem os outros), é perfeitamente normal haver hoje em dia situações de fome, que são bem diferentes das situações de pobreza extrema, nas grandes cidades ou nos grandes aglomerados urbanos.

Quando estava em Moçambique, em Lichinga, podia ver que, apesar das situações de pobreza extrema com que era confrontado, com pessoas sem condições de habitação, saneamento ou higiene, com roupas rasgadas e doenças várias, poucos ou nenhuns dos seus habitantes passavam fome, e os que passavam era porque não trabalhavam para isso. Isto porque a cidade era pequena, e os campos agrícolas espalhavam-se ao redor da cidade. Terra de ninguém, que os habitantes aproveitavam para cultivar as suas machambas (hortas comunitárias), conseguindo o mínimo para a sua subsistência. Quando tive oportunidade de conhecer outras cidades maiores, como Nampula, Beira ou Maputo, apercebi-me que o paradigma tinha mudado e, se por um lado as pessoas se vestiam melhor ou tinham melhores condições de salubridade, por outro lado muitas morriam de fome ou passavam muito mal. Com concentrações muito grandes de habitantes, deixava de haver espaço para a agricultura, e os habitantes passaram a depender dos seus rendimentos, que não tinham, para poderem comprar comida que tinha de vir de fora. Sem trabalho, ou com trabalhos muito mal pagos, não havia rendimento suficiente para conseguirem comprar a sua comida, e então passavam fome.

Nos países desenvolvidos, a situação é a mesma. A mudança de paradigma que, de há uns anos para cá, colocou na cabeça das pessoas que as cidades grandes são o melhor local para viver, levando à desertificação do interior, criou a necessidade de deixarmos de produzir para nós e confiarmos na produção que outros fazem para nós. Só que para isso precisamos de dinheiro, e as subidas nas taxas de juros, os níveis de desemprego e outras condições, levam a que muitos não tenham capacidade de se alimentarem e, portanto, passem fome.

Escolhemos viver uma vida onde dependemos demais do que os outros preparam para nós, em todos os aspectos. Só que esta opção de vida consumista que a sociedade moderna nos apresneta tem os seus custos. Presos em jaulas de cimento com 10 andares ou casas contíguas em bairros sociais, as pessoas não têm espaço para se auto-sustentarem, através de cultivo de alimentos, e portanto passam fome, porque não conseguem produzir para si nem comprar o que outros produzem para eles. Esta divisão de tarefas que temos na nossa sociedade, em que cada se especializa num serviço e espera que o que recebe desse serviço seja suficiente para comprar o serviço do outro, está a falhar em grande, e não tarda muito voltaremos a ocupar as terras desertificadas, cultivando para a nossa subsistência. Mas antes disso, tudo irá piorar, à medida que se cortam os salários e os subsídios de que as pessoas precisam verdadeiramente, porque com menos dinheiro consumo menos. Se consumo menos dou menos a quem produz para mim, que fará com que ele tenha menos para comprar o que ele próprio precisa, e a bola de neve não irá parar.

É por isto que a pobreza extrema se revela de formas diferentes conforme seja a realidade que analisamos: no campo a pobreza extrema não mata ninguém à fome, nas grandes cidades mata, e continuará a matar até que façamos algo quanto a isso. Mas algo sério, digno de verdadeiros visionários. O problema é que poucos dos nossos governantes terão essa capacidade visionária e serão capazes de resistir aos interesses instalados, e mesmo esses enfrentarão a oposição de quem não tem essa visão e não compreenderá essas opções. E por isso, este número de 15 milhões que tanto impressiona só terá tendência a subir...

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